8/3/2014 às 00h05 (Atualizado em 8/3/2014 às 03h42)
Dia da Mulher: será que temos o que comemorar?
Mulheres continuam a ser agredidas, assediadas e ganham muito menos do
Queimadas e agredidas dentro e fora de casa, mulheres lutam para recompor suas vidasReprodução/ Emilio Morenatti
Como esquecer Célia Regina Pesquero, química formada e doutorada na USP, onde era professora, que teve o maxilar fraturado pelo marido. Após a agressão, ele se jogou do 13º andar do prédio onde moravam, em Osasco, com filho do casal, Ivan, de 6 anos, no colo. Celia confirmou à polícia que “sempre apanhava”. Se no caso dela chama a atenção o alto nível de escolaridade, a realidade das mulheres brasileiras é alarmante em todos os níveis.
A pesquisa 'Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado" da Fundação Perseu Abramo, organizada pelo professor da Faculdade de Sociologia da USP, Gustavo Venturi, a violência contra a mulher permeia toda a sociedade, seja qual for o recorte, renda, cor, escolaridade, região, ou outro fator. O estudo investigou 20 diferentes modalidades de violência, agrupadas por controle ou cerceamento, violência física, psíquico-verbal, sexual e assédio.
Espancadas a cada 2 minutos
E revelou que 10% das entrevistadas já foram espancadas uma vez na vida – 20% dessas no último ano. Resultado: cinco mulheres são espancadas no Brasil a cada 2 minutos. “Durante muito tempo, a sociedade defendeu que em briga de marido e mulher não se mete a colher, as mulheres não encaram publicamente, as pessoas acham que é um problema do casal”, acredita Venturi. Quando questionados, os homens revelam a proximidade com a violência. “Dos homens entrevistados 50% disseram conhecer alguém que já bateu em mulher, e 25% tinham algum caso na família.”
O que motiva tanta violência? Em metade dos casos, tanto homens quanto mulheres declararam que a briga por causa da fidelidade é apontada como principal vilã, demonstrando que o tema da posse, do pertencimento ao outro, é a questão de fundo que mais alimenta essa violência. “Isoladamente é a principal razão. As questões relativas à autonomia delas (a mulher quer sair para trabalhar, escolher como se vestir ou voltar a estudar) geram 1/5 das agressões.”
Cantadas baratas
Agredidas dentro de casa, as mulheres sofrem também nas ruas. O assédio, travestido de cantadas baratas, mereceu uma campanha de alerta contra o incômodo e os traumas que causa. Mais de 80% das mulheres que participaram do levantamento Chega de Fiu Fiu, realizada pelo site Olga, declararam que não gostam de receber as tais cantadas na rua.
Cerca de 90% delas já deixaram de fazer alguma coisa por medo de assédio; 85% já sofreram com estranhos passando a mão em seus corpos. “O assédio é grave e não tem limites, nem mesmo de idade: algumas mulheres me confidenciam que sofreram pela primeira vez com o problema aos dez, nove e até oito anos. Infelizmente, tal comportamento é visto com normalidade por grande parte das pessoas. Também é legitimado por propagandas e formadores de opinião equivocados, que confundem as relações românticas naturais humanas com a violência e agressividade do assédio sexual”, declara Juliana de Faria, uma das idealizadoras da campanha.
Provar às próprias mulheres que, não, não é culpa delas, é o maior desafio. A cultura machista está impregnada não apenas na mente dos homens, como também na das mulheres, que compram a ideia (equivocada) de que são algozes onde seriam vítimas. Na série "100 Mulheres - Vozes de Meio Mundo", publicada globalmente pela BBC, a historiadora Mary Del Priore levanta essa bandeira. “As mulheres brasileiras do último século conquistaram o direito de votar, tomar anticoncepcionais, usar biquíni e a independência profissional.
Mas ainda hoje são vítimas de seu próprio machismo.” Segundo ela, que é autora de obras como História das Mulheres no Brasil (ed. Contexto) e Histórias e Conversas de Mulher (ed. Planeta), "muitas não conseguem se ver fora da órbita do homem e são dependentes da aprovação e do desejo masculino.”
Mulheres machistas
Segundo ela, o machismo no Brasil se deve muito às mulheres. “São elas as transmissoras dos piores preconceitos. Na vida pública, elas têm um comportamento liberal, competitivo e aparentemente tolerante. Mas em casa, na vida privada, muitas não gostam que o marido lave a louça; se o filho leva um fora da namorada, a culpa é da menina; e ela própria gosta de ser chamada de tudo o que é comestível, como gostosa e docinho, compra revistas femininas que prometem emagrecimento rápido e formas de conquistar todos os homens do quarteirão. O que mais vemos é o machismo das nossas mulheres.”
A posição é polêmica, mas ajuda a compreender a subserviência feminina diante de questões maiores, como a aceitação de salários muito mais baixos do que o dos homens, ainda que com jornadas de trabalho tão ou mais exaustivas.
Salários de 1993
Segundo levantamento do DataPopular, o que as mulheres ganham hoje é o que os homens recebiam em 1993. “O que talvez explique a inatividade da mulher frente a esse padrão é que, com a entrada num mercado de trabalho tão competitivo, com tantas crises econômicas e uma classe média achatada, a luta pela sobrevivência se impõe sobre qualquer outro projeto.
Essa falta de tempo para respirar, o fato de ter que bancar filhos ou netos, isso talvez não dê à mulher tempo para se conscientizar e se erguer acima do individualismo – outra tônica do nosso tempo – e pensar no coletivo”, acredita Mary Del Priore.
O aumento da presença feminina no mercado de trabalho é inegável. Dados do Data Popular apontam que mais de 10 milhões de mulheres no Brasil passaram a trabalhar nas duas últimas décadas. Em 1992, as mulheres contribuíam com menos de 1/3 da massa de renda total dos brasileiros. Em 2012, já representavam quase 40% desse montante. De 1993 a 2013 saltou de 20% para 38% o número de mulheres responsáveis pelo domicílio.
Na classe baixa o percentual de lares chefiados por mulheres é ainda maior. De acordo com a amostra "Síntese de Indicadores Sociais" do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em relação aos casais sem filhos, o índice de chefia feminina passou de 4,5% em 2001 para 18,3% em 2011; já entre os que têm filhos, subiu de 3,4% para 18,4%, no mesmo período. A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) aponta que 37,4% das famílias têm como pessoa de referência a mulher. No entanto, 13% revelam já terem sido espancadas dentro de casa. Essa conta não fecha. O cenário não parece de fato favorável a comemorações.
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