São Paulo - A primeira impressão é de um lugar futurista. Quem chega ao parque Jardins da Baía, em Singapura, logo avista as supertrees, estruturas metálicas coloridas com altura entre 25 e 50 metros que parecem ter saído de um filme de ficção científica.
Parte desses jardins verticais é ligada por uma passarela. Lá de cima, dando um giro de 360 graus, o que se vê são símbolos marcantes da economia do país. Ao longe, o mar cheio de navios e os guindastes do porto, uma herança dos colonizadores britânicos e hoje o segundo mais movimentado do mundo no transporte de contêineres.
Ao lado do porto, os arranha-céus do setor financeiro, há décadas uma referência global. Mais próximo das supertrees fica o Marina Bay Sands, um hotel e centro comercial de alto luxo aberto em 2010 ao custo de 5,5 bilhões de dólares. O complexo chama a atenção por ter uma estrutura no teto que se parece com um grande barco. Da arquitetura ao refinamento, fica clara a intenção de Singapura de firmar sua imagem como um lugar cosmopolita, a Nova York do Oriente.
O fato de poder ver todos esses marcos da economia local de um mesmo lugar tem, pelo menos, dois significados. O primeiro é que o país é minúsculo. A população é de 5,4 milhões e sua área total equivale à metade do município de São Paulo. O segundo significado é que as evidências do sucesso econômico da cidade-estado estão por toda parte.
Quando se tornou independente há 50 anos, Singapura, formado por uma maioria de origem chinesa e dois outros grupos étnicos, malaios e indianos, era mais um país pobre do Sudeste Asiático. Hoje sua renda per capita de 56 200 dólares é superior à de Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido.
Sem recursos naturais, tendo de importar até parte da água que sua população bebe, essa pequena ilha quase colada à Malásia deu um pulo do Terceiro para o Primeiro Mundo em apenas duas gerações — e atraiu a atenção de especialistas em desenvolvimento econômico. Todos interessados em entender sua estratégia de crescimento.
A receita de Singapura tem aspectos muito próprios — muitos deles indesejados para um país como o Brasil. Embora haja eleições e oposição, Singapura não é considerado uma democracia plena. O Partido de Ação Popular está no poder desde a independência, os eleitores da oposição são passíveis de retaliações e a imprensa não é livre.
“Muitas pessoas têm medo de criticar o governo. A autocensura funciona melhor que a própria censura”, diz a escritora Catherine Lim, há mais de duas décadas uma voz dissidente do discurso oficial. A crença de que não serão apeados do poder é vantajosa para os políticos do Partido de Ação Popular, pois permite que possam formular políticas de médio e longo prazo.
A vulnerabilidade do país — por seu tamanho e falta de recursos naturais — também é um ponto peculiar. Dá um sentido de urgência à sua população. Para o Brasil, essas são as partes não aplicáveis do modelo. Mas as políticas usadas para aumentar a eficiência estatal, talvez o aspecto mais crucial da fórmula de Singapura, podem ser colocadas em prática por aqui sem nenhuma contraindicação.
A burocracia da pequena ilha vem sendo considerada um exemplo para o mundo. “Para compreender o sucesso de Singapura é vital analisar o papel do governo. Nas últimas décadas, nenhum outro país foi tão bem-sucedido na criação de um Estado moderno”, diz Adrian Wooldridge, um dos colunistas da revista britânica The Economist e um dos autores de A Quarta Revolução — a Corrida Global para Reinventar o Estado.
O governo de Singapura, ao contrário do brasileiro, não se propõe a oferecer todos os serviços. Mas é imbatível naquilo que faz — e isso é, em grande parte, consequência dos incentivos que criou para seu funcionalismo.

Ganha quanto entrega

No Brasil e em vários outros países, existe um sistema baseado no mérito para contratar servidores públicos. As vagas são oferecidas aos primeiros colocados em concursos, um fator que garante a atração dos melhores talentos disponíveis e, acima de tudo, funciona como um escudo contra favorecimentos pessoais.
Mas, uma vez dentro da máquina estatal, esses novos funcionários geralmente deixam de ser avaliados pela qualidade do trabalho que executam. Singapura decidiu ser diferente. Mesmo após a contratação, continua medindo o desempenho com a ajuda de um sistema meritocrático.
“O país conseguiu criar uma cultura de profissionalismo no serviço público”, diz Francis Fukuyama, professor de ciências políticas na Universidade Stanford e autor de uma recente trilogia sobre a construção histórica de instituições políticas.
Em Singapura, os 81 000 funcionários públicos têm uma remuneração fixa e outra variável. O tamanho do bônus é determinado pela performance do PIB e por uma avaliação pessoal que leva em conta os últimos 12 meses e o potencial de cada um. Para profissionais como motoristas, com salários menores, a parte fixa é maior.
Na média gerência, a porção variável chega geralmente a 30% do total. Na alta administração, o valor máximo do bônus representa por volta de 50%. A avaliação pessoal acontece em duas partes. Na primeira, o funcionário conversa com seus dois superiores mais próximos e examina quais metas foram alcançadas.
Numa segunda etapa, os chefes debatem qual é o potencial máximo da carreira do avaliado — se poderá subir muitos níveis hierárquicos. Embora o governo tenha o poder de demitir, os funcionários mal avaliados por alguns anos costumam ser remanejados para posições de menor responsabilidade.
Esse modelo foi adotado na década de 80 por influência de Lee Kuan Yew, o fundador de Singapura morto neste ano. A inspiração veio de um sistema semelhante ao da petroleira Shell. “Aqui o governo funciona como se fosse uma consultoria de alto padrão, tipo a McKinsey. A diferença é que a McKinsey apenas dá conselhos. O governo formula e executa políticas públicas”, diz Kishore Mahbubani, diretor da Lee Kuan Yew School of Public Policy, uma referência na Ásia.
A elite do funcionalismo tem um tratamento diferenciado. Quem faz parte do serviço administrativo é geralmente selecionado por volta dos 18 anos, logo após o exame final do ensino médio. Recebe uma bolsa de estudos e, na maior parte das vezes, vai estudar em uma universidade top de linha no exterior. Quando volta, é reavaliado e, se mantido, passa por vários órgãos do governo.
Se aprovado em cada etapa, vai galgando postos hierárquicos de forma rápida. Funcionários comuns que tenham repetidas avaliações muito acima da média também entram nessa espécie de pista expressa de promoções. Os do serviço administrativo que chegam aos 30 e poucos anos e não mostram competência e potencial para ocupar os altos cargos da burocracia são convidados a se retirar ou encostados.
Quem segue em frente não costuma se arrepender. Desde o início dos anos 90, o governo adota uma política agressiva de remuneração. A justificativa é que a maior parte dos funcionários públicos não tem direito à aposentadoria e, para evitar um êxodo de talentos, o Estado deve pagar valores comparáveis aos do setor privado.
O governo de Singapura não divulga as faixas salariais do funcionalismo, mas, de acordo com uma pesquisa realizada em 2011 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, um secretário permanente de um ministério, o topo da carreira, tem um pacote de remuneração anual que pode chegar a cerca de 3 milhões de reais num ano de alto crescimento econômico.
A fórmula de Singapura tem seus problemas. Os membros do serviço administrativo podem ter um belo currículo do ponto de vista acadêmico, mas não necessariamente serão bons chefes nos ministérios. Isso sem contar que a seleção feita quando os candidatos têm menos de 20 anos deixa de fora aqueles que demoram mais a amadurecer suas potencialidades.
Ainda assim, o principal resultado da estrutura meritocrática de Singapura é um Estado com um enorme poder de execução de políticas públicas.
“Quando o governo decide que vai colocar um projeto em prática, algumas pessoas podem discordar de sua relevância, mas todas sabem que será implementado da melhor forma possível”, diz o economista Donald Low, um dos autores de Hard Choices: Challenging the Singapore Consensus (“Escolhas difíceis: o consenso de Singapura desafiado”, numa tradução livre), livro que da primeira à última página critica o modelo do país.
Determinar a qualidade de todo um governo é uma tarefa difícil. Primeiro porque a disparidade no serviço público costuma ser grande. Há sempre exemplos de excelência, como os técnicos do Banco Central no caso do Brasil, e funcionários sem nenhuma ideia de gestão em outros órgãos.
Segundo porque existem vários indicadores. “Recentemente vem se firmando a ideia de que a melhor medida de qualidade é o impacto das políticas públicas”, diz Sergio Lazzarini, professor da escola de negócios Insper, de São Paulo. Nesse sentido, Singapura é, disparado, o destaque.
O país gasta apenas 3,3% do PIB em educação, mas seus alunos são os segundos em matemática e ciência do Pisa, o exame da OCDE, o clube dos países ricos. O Brasil gasta mais de 6% do PIB e está na 58a e na 59ª posição, respectivamente. Singapura tem duas universidades entre as 13 melhores do mundo.
A Universidade de São Paulo, a brasileira mais bem colocada, está em 143º lugar. Singapura tem o melhor ambiente regulatório para a criação e a operação de uma empresa, segundo o ranking Doing Business — o Brasil aparece na 116a posição. De acordo com os Indicadores de Governança, produzidos pelo Banco Mundial, Singapura tem o Estado mais eficaz do mundo.

O tamanho é importante?

Quem torce o nariz para a sugestão de usar o modelo de Singapura para repensar o Estado brasileiro costuma recorrer a dois argumentos. Numa democracia, propor um sistema meritocrático no serviço público é comprar uma briga com os sindicatos.
É certo que os representantes do funcionalismo costumam defender a isonomia salarial para seus associados de um mesmo nível hierárquico — sejam eles produtivos ou improdutivos. Mas, como provaram os protestos de rua de meados de 2013, também é verdade que existe um clamor popular pela melhoria dos serviços públicos.
O outro argumento é a diferença de tamanho entre Brasil e Singapura. Não resta dúvida de que a estrutura burocrática brasileira, com suas esferas federal, estaduais e municipais, é mais complexa. Sem falar nas disparidades regionais e na população.
É intrigante, porém, que todas essas considerações não tenham impedido a China de se inspirar na pequena ilha. “Precisamos plantar 1 000 Singapuras na China”, disse o então líder chinês Deng Xiaoping ao visitar o país nos anos 70. Hoje, cerca de 10 000 quadros do Partido Comunista passam anualmente pela Academia Chinesa de Liderança Executiva, perto de Xangai.
Não vão até lá para ser doutrinados, mas para se tornar administradores eficientes. A grande inspiração veio de Lee Kuan Yew, um dos destaques na galeria de fotos da escola. Quando querem aprender sobre inovação, os chineses vão ao Vale do Silício. Quando o assunto é governo, a atenção se volta para a microscópica Singapura.